No dia 29 de Outubro de 2008, pelas 13h, dirigimo-nos ao Hospital Dona Estefânia para entrevistar a Doutora Leonor Sassetti com o objectivo de sermos esclarecidos, relativamente a algumas das questões que tinhamos sobre o nosso tema. Assim sendo, seguem-se as nossas perguntinhas e as respectivas respostas dadas.
Leonor Sassetti, médica pediatra e percursora de consultas para adolescentes no Hospital de Santa Maria, juntamente com todos os elementos do grupo.
- Queríamos começar por lhe fazer uma pergunta mais pessoal. O que é que a levou a querer trabalhar com jovens?
A razão principal é que fui uma adolescente muito rebelde e acho que fui muito incompreendida. Tive sempre uma grande atracção para entender o que se estava a passar nesta idade. Quando eu entrei para pediatria os adolescentes ainda não faziam parte da idade pediátrica. Quando eu percebi que ia haver alargamento, achei logo que era uma idade que eu, eventualmente, poderia ajudar. Eu acho que o motivo essencial foi ajudar, de modo a que alguns jovens tivessem com quem falar, algo que eu senti que na altura não tive.
- Sabendo que costuma lidar diariamente com jovens, já teve algum caso de anorexia ou bulimia?
Sim, muitos. Isto sendo uma consulta de adolescentes, portanto, é uma consulta de medicina de adolescentes, uma abordagem médica global de todos os problemas que se podem manifestar das maneiras mais diferentes nesta idade. A anorexia nervosa é uma patologia típica/ característica desta idade, embora cada vez mais vão surgindo alguns casos, não são muitos, de crianças antes da idade da adolescência. Segundo a OMS, o adolescente é um indivíduo entre os 10 e os 19 anos. De facto, vão aparecendo já alguns casos de anorexia verdadeira, de doenças do comportamento alimentar antes dos 10 anos.
Portanto, não é exclusiva da adolescência. Existem doenças que têm um bocadinho de anorexia nervosa e bulimia nervosa. Há um grupo de situações que não se inclui numa ou noutra. Por exemplo, para se ter anorexia nervosa tem que se ter menorreia, portanto, não ter período. Se uma pessoa tem os critérios todos: medo de ficar gorda, querer ficar mais magrinha, mas o período ainda vem; ou uma criança que nunca teve o período. Há várias situações em que não se tem os critérios todos, mas tem-se alguns e então isto é um grupo muito grande que se chama em português: perturbação do comportamento alimentar sem outra especificação (PCASOE), foi traduzido do inglês: EDNOS – eating desorder not otherwise specified. Portanto, eu acho que a grande maioria, se calhar, tem mais EDNOS, PCASOE. Mas aparecem muitos casos com anorexia.
- Há hipótese de uma pessoa que nunca teve o período deixar de comer e ficar infértil?
Sim. Uma pessoa que decide deixar de comer, e portanto, decide entrar num estado de fraqueza, de grande má nutrição, o corpo funciona de modo a poupar energia. Porque a pessoa não ingere, não tem energia disponível para a sua vida (para se mexer, estudar, coração bater, respirar, …), então o corpo entra num sistema de poupança de energia, o que faz com que o coração bata mais devagar, com que a temperatura do corpo baixe, portanto, tudo a funcionar menos para gastar menos energia básica. Consequentemente, tudo o que tem a ver com o desenvolvimento, puberdade, pode parar (se já começou), ou não se iniciar.
Claro que isso depois depende da fase em que os médicos ficam atentos para a questão e também dependendo do sucesso de reverter a situação. Se a jovem andou muitos anos sem ninguém se aperceber, se for um caso que então, por causa disso for mais difícil de controlar, se a família não estiver envolvida; um coisa que vai acontecer seguramente é ficar mais baixinha, ou seja, não vai atingir aquilo que à partida estava predisposto que ela atingisse, e é verdade que estas meninas com anorexia nervosa podem ter uma diminuição de fertilidade, sem dúvida nenhuma. Às vezes, há algumas que nunca voltam a ter o período, embora seja uma percentagem mínima. Há algumas que têm um período irregular, o que significa que os ciclos são anovulatórios, não ocorrer ovulação e portanto não há fecundação.
- A ajuda para este tipo de doenças é acessível a toda a gente?
É. Eu acho que é. Primeiro, eu acho que os números não são assim muito avassaladores e nós conseguimos dar conta da situação. Eu acho que o mais importante é detectar precocemente, tentar encaminhar. Por isso é muito importante o trabalho que vocês estão a fazer, mesmo a nível da escola. A mim já me aconteceu, quando trabalhava na Amadora, haver pessoas, professores das escolas, que ligavam directamente a marcar a consulta e não há problema nenhum nisso. O importante é detectar que há ali qualquer coisa, confrontar a pessoa e começar a segui-la. Eu acho que se conseguem resultados muito melhores se as coisas ainda não estiverem muito instaladas, sem dúvida nenhuma. Portanto, eu acho que é acessível a toda a gente.
- A anorexia e a bulimia atacam cada vez mais os nossos jovens. Como é que acha que são os tratamentos destas doenças em Portugal?
O tratamento tem que envolver vários profissionais. Como isto é uma doença do foro psicológico, com efeitos, repercussões a nível médico, mas é do foro psicológico; tem que ter sempre uma pessoa da área da saúde mental, seja psiquiatra ou um psicólogo. Às vezes os dois dependem dos casos. O psiquiatra de crianças jovens chama-se pedopsiquiatra (se for abaixo dos 16 anos), se for maior de 16 anos, psiquiatra de adultos. Basicamente, tem de ser uma pessoa que esteja à vontade com esta patologia, porque há muitos que não estão e que não gostam. Habitualmente, também envolvem um ou uma dietista; ou um ou uma nutricionista, também é muito importante para estabelecer um plano de dieta, pretende-se que a pessoa readquira hábitos saudáveis. Por exemplo, se for uma pessoa que esteve sem comer nada durante uma data de tempo ou muito pouco, não pode de repente pôr-se a comer tudo, tem que ser uma coisa gradual, de acordo com os gostos
da pessoa. A dietista é muito importante, ajuda imenso a adequar, fazer uma dieta equilibrada. Além disso, o médico também é importante. O médico pode ser de várias especialidades: pediatra, internista, ou endocrinologista. Os psiquiatras podem centrar-se nas coisas da saúde mental e o que é que levou a pessoa a enveredar por aquele caminho, ajudar a pessoa a entender-se, e podem não se preocupar com a questão dos pesos ou se tem anemia, se os intestinos funcionam bem, se a tenção está baixa, deixam isso tudo para o outro colega. Portanto, é bom que haja pelo menos estes três. Às vezes, os doentes podem ligar-se mais a uma pessoa ou outra e isso não faz mal nenhum. Por isso é que nós funcionamos em equipa, é preciso que haja algum profissional que consiga mobilizar as energias do doente fazendo-o ultrapassar, mudar e andar para a frente. Nesta equipa, por exemplo, também temos uma enfermeira. E às vezes é com ela que os jovens estabelecem uma ligação preferencial. A enfermeira, no caso de haver, também pode ter um papel essencial.
- Maioritariamente, estes tratamentos costumam ser demorados. Tem conhecimento de algum caso em que o paciente tenha piorado devido a durabilidade do tratamento?
Numa fase inicial, tenta-se que se consiga controlar a situação sem internar, mas estabelecem-se alguns limites. Portanto, se se chegar à conclusão que o doente não está a ser capaz, porque não tem o apoio, envolvimento da família, porque as coisas já estão muito avançadas ou porque há outras complicações (por exemplo, um doente que está muito desidratado ou que o coração está a bater muito devagarinho) portanto, há situações que justificam o internamento imediato e há outras situações em que no seguimento do doente se percebe que aquilo sem internamento não evolui e então interna-se. No internamento, as regras são muito rígidas, é a maneira de se tratar estes problemas hoje em dia. No fundo, nós partimos do princípio que o doente sozinho não tem disciplina suficiente para fazer aquilo que nós estamos a mandar. Portanto, é internado, fica sem visitas, as horas das refeições são definidas, a dietista faz um esquema gradual conforme a pessoa. Vai-se
aumentando gradualmente, até ao fim de uma semana, em que está atingir o que nós pretendemos, também não se pode ter um aumento excessivo porque isso também pode trazer problemas. Depois o doente vai adquirindo privilégios à medida que vai atingindo metas de peso. Em certos países, o doente quando entra não pode sair do quarto, fica isolado, a seguir, quando atinge outra meta já pode sair do quarto, participar nas actividades, receber e fazer telefonemas, pode sair à rua. São coisas que fazem parte deste processo gradual de privilégios que as pessoa vão tendo de acordo com os objectivos alcançados. Claro que, quando o doente está muito desnutrido, não é possível, fazer nenhum trabalho psicológico com ele, porque as pessoas com fome não conseguem pensar. Portanto, o objectivo é primeiro recuperar algum peso, então depois começamos a falar. Quanto ao internamento em Portugal existe um que funciona muito bem, o da pedopsiquiatria. Este permite que a pessoa tenha tempo para pensar sobre si, para reflectir, para se organizar e às vezes há conflitos muito grandes dentro da família e o afastar também é bom. Isto, ajuda porque há reuniões com a família com a presença de um técnico, de um médico, psiquiatra; onde as pessoas resolvem os problemas falando; o enquadramento é muito bom e favorecedor. O que acontece muitas vezes é que ao inicio há bastante renitência até que o paciente dá o “clique” e a pessoa está no bom caminho e volta à vida. O que se passa nestas doenças é que as questões ligadas com a alimentação tornam-se o centro da vida; e o centro da vida deve ser o que nós gostamos de fazer, estar com os amigos, as nossas actividades, a família. Nós comemos para fazer essas coisas.
- Por vezes as famílias podem complicar o tratamento. Tem algum conselho para os familiares de alguém que sofre destes distúrbios alimentares?
Eu estou de acordo com os psiquiatras quando estes dizem que a anorexia nervosa, a perturbação do comportamento alimentar é um sintoma de que a família não funciona bem. É como se fosse a ponto do iceberg e depois começamos a ver que há outras coisas.
Há sempre questões relacionadas com a comunicação dentro da família. Claro que, quando
a família quer colaborar e aceita e está envolvida com o doente, é muito mais fácil a intervenção. Se a família se opôs à intervenção dos técnicos, se a família acha que aquela maneira de conduzir o processo não está correcta, é uma grande confusão.
O objectivo tem de ser, não só tratar a pessoa, mas também por exemplo, fazer com que ela não morra.
No caso de o doente estar muito mal, em perigo de vida e a família opor-se ao internamento; nós, médicos, podemos resolver a situação através da lei, vamos a tribunal e o juiz confia a guarda dessa criança, se for menor, ao hospital e os pais não podem intervir.
Quando o paciente fica melhor vai ser, em princípio, entregue à família, a não ser que esta seja mesmo muito complicada. Tem de haver um trabalho da parta da família para melhorar as coisas.
- Acha que os familiares também deveriam pedir a colaboração dos psicólogos para ajudar melhor os seus filhos?
As pessoas da saúde mental podem fazer apoio individual ao doente, podem também, detectar que alguém da família precisa de apoio. Por exemplo, no caso de não haver comunicação na família, esta necessita de uma terapia familiar. Habitualmente, vão-se fazendo algumas reuniões; quando eles estão internados e não têm visitas, numa fase inicial só vêm os pais, uma ou duas vezes por semana na reunião familiar, é algo mais leve, não é propriamente terapia familiar.
A terapia familiar é um processo muito estruturado e mais arrastado, quando se pede de facto são famílias muito disfuncionais e que necessitam dela.
- Sabemos que os jovens que sofrem de anorexia e bulimia estão bastante debilitados psicologicamente. Como médica tenta dar alguma ajuda neste campo ou deixa que seja o psicólogo a tratar destes problemas?
Não, não. Eu acho que todos os membros da equipa são importantes e acho que eles têm que perceber que todos nos preocupamos com eles; o eles estarem mal ou bem não nos é indiferente e que nós nos
empenhamos e queremos que as coisas mudem. Portanto, eu não estou muito preocupada em saber o peso que cada um tem na equipa. Mas percebo perfeitamente, e isso prende-se com a questão da enfermeira na outra pergunta, que as pessoas podem ter um peso diferente e isso tem a ver com o próprio jovem, com a empatia e também tem a ver com a maneira de ser.
Por exemplo, agora estou a seguir uma menina, um caso bastante complicado, e a menina tem alguma renitência em relação à pedopsiquiatra que é excelente e que é muito preocupada e muito envolvida e ela, por ela, até saía mas claro que não pode ser porque é ela que vai ajudar a menina a organizar muitas coisas. Todos temos que nos empenhar, claro que não estamos aqui a fazer o papel dos outros mas a estimular, e dizer que nos preocupamos é muito importante, eu sinto que isso é importante.
- Quando ouvimos falar deste assunto, chegamos à conclusão que existem cada vez mais casos. Como acha que têm evoluído estes distúrbios ao longo do tempo?
Há poucos estudos em Portugal, os estudos que há mostram uma percentagem muito baixa. Noutros países, é diferente. Por exemplo, aqui em Espanha há imensos, imensos
casos, não se imagina. Há um conjunto de explicações, as espanholas preocupam-se mais com o aspecto físico, se calhar tem a ver também com o poder de compra. Porque isto é uma doença das pessoas que têm acesso. Em Moçambique não há anorexia nervosa. Aliás, aqui há alguns anos ouvi uma médica a falar que dizia assim: “Eu acho que é um tratamento radical para estas coisas que é levar uma jovem dessas a um país desses”. Eu não sei se é tanto assim. Porque é preciso depois modificar a cabeça. Por exemplo, no Brasil só há na classe superior, nas outras não há. É um país de grandes contrastes, porque têm as doenças dos países muito pobres (má nutrição, febre reumática) e têm a “dos ricos”, anorexia nervosa.
- Na sua opinião acha que a sociedade actual influência o comportamento e maneira de pensar dos nossos jovens?
Claro que influência. Mas isso, também está muito discutido e não há ideias claras sobre esse assunto, da influência da publicidade e dos modelos que são propostos nesta
situação. Não é claro isso porque pensa-se que também há factores genéticos que são muito importantes. Acho que isso não está ainda completamente esclarecido. Não sou uma grande “expert” nisso mas é polémico.
A verdade é que, por exemplo, toda a gente se lembra, acho que foi o ano passado ou há dois anos, em Espanha, que aquelas modelos completamente anorécticas foram proibidas de desfilar. Eles agora têm um mínimo, o que significa que talvez haja algumas que influenciem. Agora, hoje em dia, há uma área que está a despertar o interesse crescente e que é a possível influência de sites promotores da anorexia. Nunca me deu para navegar nessas coisas. Agora aquilo é muito preto no branco, olha faz isto ou como é que hás-de enganar.
- Na maior parte dos casos que ouvimos falar são sobre jovens do sexo feminino, porém já existem casos de rapazes. Têm surgido mais rapazes a pedir ajuda para combater estes problemas?
A percentagem é, mais ou menos, até aqui; a proporção era de 9 raparigas para um rapaz.
Mas estamos com a ideia de que está a modificar-se, quer dizer já não está tanto assim, já estão a aparecer mais rapazes. Em muitos rapazes, em todos os que eu vi até hoje com qualquer coisa relacionada com isto, tinham perturbação da identidade de género, ou seja, um bocadinho com tendências homossexuais ou com dúvidas em relação à sua orientação sexual. Aqueles que eu vi, estou-me a lembrar de três, não tinham ainda idade para serem homossexuais assumidos porque, como sabem, isso é uma coisa que ainda se vai construindo durante a adolescência mas em todos havia ali qualquer coisa.
- Com a nossa pesquisa lemos uma notícia que nos informou que em 2004 cientistas espanhóis tinham identificado uma variante genética que aumenta a tendência para distúrbios alimentares, como a anorexia e bulimia. O que é que nos pode dizer sobre esta recente descoberta?
Não sei nada sobre isso (risos). Podem vocês dizerem-me a mim (risos). Eu acredito que hoje em dia, estamos a descobrir que dá uma susceptibilidade maior a uma pessoa que tenha esse padrão genético e que depois juntando-se várias coisas, quer dizer, um determinado ambiente, determinadas circunstancias…
- A medida que fomos fazendo a nossa pesquisa encontramos blogs de raparigas que defendiam a anorexia e a bulimia como um estilo de vida, o que nos preocupou muito, visto terem muitos seguidores, e outros que pedem ajuda para entrarem neste “estilo de vida”. Qual é a sua opinião sobre o modo como estes problemas são abordados na Internet?
Sim, isso a mim também me preocupa porque nós não sabemos qual é efectivamente o impacto e capacidade que estes blogs têm de modificar e
induzir determinados comportamentos. Nós sentimos um bocado, digamos, como uma luta desigual. As pessoas do marketing têm muito mais meios do que as pessoas dos estilos de vida saudáveis, quer dizer, os outros recorrem a campanhas de publicidade que estudam bem como é que hão-de fazer vender o seu peixe e a gente anda para aqui a dizer “Ah! É bom fazer exercício físico” e mais não sei quê. Ou seja, nós não utilizamos as mesmas armas que eles. Aqui também me faz lembrar um bocadinho isso porque a gente sabe que a Internet tem realmente uma grande eficácia. E portanto, como é que nós conseguimos lutar contra isso?
Mas como é uma coisa muito nova, ainda não está estudado o impacto.
- Estando ligada aos jovens, trabalha directamente com alguma associação de apoio? Como é que a associação trabalha?
Há uma associação de familiares, AFAAB. Têm reuniões cá e vocês podem ir. São pais que têm graves problemas e que se reúnem.